O Conselho Estadual de Saúde do Rio Grande do Sul – CES/RS, ao cumprimentá-lo, em face da audiência pública
promovida pelo Min. Dias Toffoli, na qualidade de relator do Recurso Extraordinário que trata acerca da
instituição da chamada “diferença de classe no Sistema Único de Saúde”, a ser realizada na data de 26 de
maio do corrente, no Supremo Tribunal Federal (considerando a repercussão geral que a referida questão
poderá impor, haja vista a existência de questões constitucionais com relevância social, política, econômica e
jurídica, que transcendem os interesses subjetivos da causa, que imporiam a uniformização da interpretação
constitucional em casos semelhantes), vem pelo presente esclarecer e manifestar o quanto segue:
No processo constituinte de 1988, foi criado no Brasil o Sistema Único de Saúde – SUS – o que efetivou uma
grande reforma na prestação dos serviços públicos de saúde à população, uma vez que este sistema
estabeleceu o acesso universal e igualitário como princípios norteadores das políticas públicas de saúde à
população, constituindo o sistema público de saúde mais democrático e inclusivo do mundo, senão vejamos o
texto constitucional:
Art. 196 - A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que
visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços
para sua promoção, proteção e recuperação.
Ocorre que recentemente, o CREMERS ajuizou diversas ações civis públicas no Estado do Rio Grande do Sul,
requerendo a instituição da chamada “Diferença de Classe” no âmbito do SUS, instrumento que permite ao
usuário pagar um adicional ao valor já pago pelo sistema público para ter um atendimento diferenciado ao
oferecido, possibilitando inclusive a oferta de melhores acomodações e o atendimento de seu médico particular,
de sua confiança, mesmo que este não seja conveniado ao Sistema.
O CREMERS lança a seguinte lógica: Se o direito à saúde é de todos e é dever do Estado em prestá-lo, ao
exercê-lo, não estaria afrontando a regra da igualdade. A diferença se daria quando o usuário tivesse
condições financeiras de negociar com o hospital e com o médico um atendimento em melhores acomodações e
melhores honorários, arcando o SUS unicamente com o que teria de suportar de qualquer forma.
Ademais, alega o Dr. Jorge Perrone de Oliveira, Coordenador da Assessoria Jurídica do CREMERS, “pela
preservação da relação de confiança médico-paciente, ao se permitir que o paciente pudesse ser internado
diretamente a pedido de seu médico particular, sem que se torne obrigatória a passagem por posto de saúde
ou emergência, acabando com aquela situação constrangedora de a pessoa acabar sendo atendida por médico
que lhe é absolutamente estranho”.
Ora, diferentemente do que afirmam os defensores da instituição da diferença de classe, tem-se uma situação
que afronta o princípio constitucional da universalidade do SUS. A cobrança pelo atendimento diferenciado
promoverá desigualdades, ferindo o princípio da equidade – um dos pilares da política do SUS, permitindo que
os usuários sejam tratados de acordo com sua condição econômica.
Ademais, se criaria invariavelmente uma nova porta de acesso ao SUS além da atenção básica e da emergência,
uma vez que um médico, privado ou conveniado, poderia determinar a internação de paciente em acomodações
diferenciadas mediante pagamento.
Esta sistemática acarretará a seguinte situação: o usuário que não tiver recursos financeiros, aguardará muito
mais tempo para sua internação, visto que o beneficiário da diferença de classe teria preferência no acesso –
pois não necessitaria aguardar a referência dada pela regulação, pois seu médico particular já poderia
encaminhar a internação, restando ao usuário do SUS que não pudesse pagar, tão somente esperar pelo
regular encaminhamento.
Atualmente, tem-se como realidade do país a falta de leitos. A diferença de classe permite ao usuário, mediante
pagamento, a internação em acomodações privativas.
Contudo, vale ressaltar que leito hospitalar não é simplesmente a cama, a acomodação privativa ou o serviço
de hotelaria; mas a estrutura adequada para ofertar todo atendimento ao paciente, o que se inclui a equipe de
saúde multidisciplinar, os exames laboratoriais e de imagem, além da completa estrutura hospitalar de
segurança, higienização, etc... Assim, por óbvio se verifica o benefício unilateral da classe médica e da rede
conveniada, em detrimento do atendimento da população, uma vez que o pagamento desta diferença de classe
não seria proporcionalmente suficiente para garantir a manutenção do atendimento regular dos usuários, que
não pudessem pagar diferença pecuniária.
Quanto a propalada “relação de confiança” entre médico e paciente bem como ao direito do paciente em
"escolher o seu médico e não se sujeitar àquele que o SUS lhe imponha", conforme aduzido pelo CREMERS,
combinado à faculdade já aludida no tocante à desconsideração da triagem, conduz às seguintes
considerações:
A livre escolha do profissional médico pelo usuário no âmbito do SUS acarretaria a consequente inutilização do
credenciamento para atuar como médico do SUS, vulnerando a segurança que o credenciamento possibilita, o
que facilitaria a ocorrência de práticas fraudulentas nas cobranças dos custos dos atendimentos e das
internações.
Assim, em face da demanda do CREMERS, a prerrogativa pleiteada de proceder na internação do enfermo sem
triagem, poderá servir de via alternativa para o desvio de finalidade da assistência médica gratuita, alversando
recursos, que já são insuficientes, a serviço de situações fraudadamente arquitetadas, ou mesmo práticas de
concussão.
Importante sempre ressaltar que a "diferença de classe", impede a concretização plena e universal do direito à
saúde. Especificamente quanto ao exame médico prévio à internação em posto de saúde, observa-se que a
triagem não fere nenhum direito individual, notadamente de usuário do SUS - pelo contrário, concretiza o
princípio constitucional da igualdade de acesso.
A hipótese de dispensa de prévia triagem, afastando a participação de profissional do SUS no pedido de baixa
para internação, e em seu lugar médicos credenciados ou não, a pretexto de ter relação de confiança com o
paciente, cria preferência destes sobre os demais usuários e, desse modo, vulnerando o princípio da igualdade
- todos os demais usuários se submeteriam à triagem usual, e aqueles que optassem por melhores condições,
possuiriam acesso diverso.
Outrossim, vale gizar que não existe a proibição do exercício de médico da confiança do paciente, à medida que
na prática, findo o tratamento financiado pelo Poder público, o paciente pode naturalmente tratar-se com o
médico de sua preferência, às suas expensas.
Cabe lembrar que a complementaridade da participação do setor privado previsto no § 1º, do Art. 199, da CF,
estabelece que as instituições privadas devem estar submetidas as diretrizes do SUS. A porta de entrada do
usuário do SUS é na atenção básica. A modalidade proposta é romper com as diretrizes do SUS e dar o poder
de definir qual o cidadão doente será atendido para o médico e/ou ao hospital, afastando toda lógica do acesso
definido pelo sistema. O critério da ordem de atendimento será de quem pode pagar.
Possibilitar a opção pela diferença de classe, ainda que sem ônus para o Estado, é conferir tratamento especial
e diferenciado aos pacientes dentro de um sistema que prevê o acesso universal e igualitário da população às
ações e serviços do Sistema Único de Saúde, conforme disposto no art. 196 da Constituição Federal.
Por fim, cabe lembrar que “diferença de classe” estava prevista na Resolução nº 283 do extinto INAMPS,
revogada pela Constituição Federal de 1988. Numa democracia, uma Resolução de uma autarquia extinta não
tem o poder de revogar a Constituição Federal e a Lei Orgânica da Saúde, prática comum na época da edição
da referida portaria, e inadmissível neste estado democrático de direito.
Assim, diante de todo o exposto, afirmamos que esta instância estadual de Controle Social do SUS manifesta
entendimento contrário à instituição da “diferença de classe” no âmbito do Sistema Único de Saúde, sob pena
de extinção do SUS como sistema público de saúde universal e igualitário, patrimonial imaterial do povo
brasileiro e modelo para a criação de políticas públicas de saúde de caráter universal e isonômico de vários
países.